Israel liberta jovem yazidi raptada pelo ISIS há 10 anos: 'Nos fizeram comer bebês'
- 24/10/2024
Duas semanas se passaram desde que Fawzia Amin Saydo, uma refém yazidi, foi resgatada do cativeiro em Gaza pelas Forças de Defesa de Israel (IDF, sigla em inglês), em uma operação conjunta que contou com a colaboração da Embaixada dos EUA.
Os yazidis constituem uma minoria étnica e religiosa curda cujos membros praticam uma antiga religião sincrética, que mistura elementos do Cristianismo, zoroastrismo e antigas religiões da Mesopotâmia.
Fawzia já retornou à sua família na região de Sinjar, no norte do Iraque.
Nesta semana, ela participou de sua primeira entrevista gravada desde sua libertação.
Alan Duncan, um ex-soldado britânico e combatente voluntário dos curdos iraquianos que se tornou documentarista, fazia parte de um pequeno grupo em Israel que tomou conhecimento da situação de Fawzia em julho.
Ele esteve ativamente envolvido em esforços para pressionar as autoridades israelenses a agir pela sua libertação.
Primeira entrevista
Devido a esse envolvimento, a família Saydo decidiu conceder a Alan Duncan a primeira entrevista gravada com Fawzia.
Trechos da entrevista – que durou duas horas – foram divulgados esta semana pelo jornal britânico The Sun.
A entrevista revela novos detalhes da história de Fawzia que são extremamente informativos, tanto sobre sua situação pessoal quanto sobre as experiências das crianças yazidis que foram escravizadas pelo Estado Islâmico em 2014.
Durante a entrevista, o tom de Fawzia é calmo e objetivo. No entanto, ela relata detalhes de um encontro com o mal que parecem quase impossíveis de serem processados pela mente humana.
Em certos momentos, Duncan, um ex-soldado de combate e veterano de várias guerras, quase se vê incapaz de prosseguir. Apesar disso, Fawzia mantém a calma, fazendo pausas para compartilhar piadas com membros de sua família.
Capturada com irmãos
Fawzia Saydo foi capturada pelo Estado Islâmico no verão de 2014, quando estava com 11 anos, junto com dois de seus irmãos.
Fawzia Amin Saydo aos 11 anos. (Foto: Divulgação/i24News)
Após a captura, ela e um de seus irmãos foram forçados a participar de uma marcha obrigatória de Sinjar até Tal Afar, que na época estava sob controle do Estado Islâmico. A jornada durou de três a quatro dias, durante os quais os yazidis não receberam comida de seus captores.
'Carne de bebês'
Segundo Fawzia, ao chegarem a Tal Afar, “eles nos disseram que nos dariam comida. Eles fizeram arroz e nos deram carne para comer com ele. A carne tinha um gosto estranho, e alguns de nós tiveram dores de estômago depois.”
“Quando terminamos, eles nos disseram que essa era a carne de bebês yazidis."
“Eles nos mostraram fotos de bebês decapitados e disseram: ‘Essas são as crianças que vocês comeram agora.’ Uma mulher teve uma falência cardíaca e morreu logo depois. As mães desses bebês também estavam lá. Uma mãe reconheceu seu próprio bebê por causa das mãos.”
E, diante do silêncio do entrevistador provocado pelo horror, ela continua: “É muito difícil, mas não foi nossa culpa. Eles nos obrigaram. Mas é muito difícil saber que isso aconteceu. Mas não estava em nossas mãos.”
A alegação de que o Estado Islâmico alimentou prisioneiros yazidis com carne humana já foi feita anteriormente, embora esse aspecto nunca tenha se tornado amplamente conhecido na narrativa sobre o ISIS no Ocidente. Talvez a mente humana reaja de maneira instintiva e evasiva diante de tal depravação, resultando na ausência de registro desse fato.
Vian Dakhil, um membro yazidi do parlamento iraquiano, foi a primeira a revelar detalhes sobre essa prática do ISIS em 2017. Dakhil compartilhou um testemunho que ela havia coletado, semelhante aos relatos de Fawzia Saydo. Ela divulgou essas informações em uma entrevista ao canal egípcio “Extra News”, que foi posteriormente traduzida pela Memri.
Sob o controle do ISIS
Após a passagem por Tal Afar, a história de Fawzia se alinha mais aos relatos conhecidos das experiências de meninas yazidis sob o controle do ISIS. Ela foi mantida por nove meses em uma "prisão" subterrânea, junto com cerca de 200 outras mulheres e crianças yazidis.
Fawzia conta a Duncan que algumas das crianças ali mantidas morreram por beber água contaminada. Durante esse período, ela não teve contato com seus captores jihadistas, exceto que se lembra de que, de tempos em tempos, eles vinham e retiravam meninas mais velhas que consideravam atraentes do local onde estavam detidas.
Após nove meses, Fawzia foi levada para um prédio que ela recorda como parecendo uma escola. De lá, ela e outras quatro meninas yazidis foram compradas por um homem chamado Abu Mohammed al-Idnani. As meninas foram então forçadas a se converter ao islamismo, e espancamentos eram aplicados a qualquer uma que se recusasse a obedecer.
Fawzia foi entregue a um homem que a estuprou pela primeira vez quando ela tinha apenas 10 anos. Ela se lembra de ter sido vendida cinco vezes, passando para as mãos de "um sírio, um saudita, outro sírio" e, finalmente, para o combatente jihadista de Gaza que "se casou com ela".
Ela o conhecia pelo nome de guerra de Abu Amar al-Makdisi. O termo "Makdisi" é geralmente utilizado entre os jihadistas para se referir a um muçulmano árabe palestino, relacionando-se ao termo islâmico para Jerusalém, "Bayt al-Makdis". No entanto, o "marido" de Fawzia era um gaziano, e não um jerusalemita.
Abusos repetidos
Fawzia aparenta ter 15 ou 16 anos quando se casou com o jihadista de Gaza. Como resultado de repetidos abusos, ela teve dois filhos, um menino e uma menina.
Ao contrário de relatos anteriores, Abu Amar al-Makdisi não foi morto durante a última resistência do Estado Islâmico em Baghouz, no vale do baixo rio Eufrates, em 2019. Em vez disso, ele foi capturado pelas forças da Coalizão e encarcerado em uma das prisões administradas na Síria pelas Forças Democráticas Sírias, alinhadas aos EUA.
Fawzia e seus filhos foram levados para o campo de prisioneiros controlado pelas SDF para famílias do ISIS em al-Hawl. De lá, os jihadistas os transferiram em uma fuga para a província de Idlib, que é controlada por grupos islâmicos e apoiada pela Turquia.
Junto com seus filhos, Fawzia foi levada por um túnel de Idlib para a Turquia. Lá, a rede do Estado Islâmico forneceu a ela um passaporte jordaniano falso, e ela e os filhos foram levados pela família de seu "marido" para o Cairo e, em seguida, para Gaza, que é controlada pelo Hamas.
Em Gaza, Fawzia foi mantida como uma espécie de escrava doméstica pela família de seu "marido". Em determinado momento, ela parece ter sido "casada" com um dos irmãos dele, que mais tarde foi morto durante os confrontos entre Israel e o Hamas.
Por um tempo, Fawzia residiu com outras jovens no Hospital Shuhada al-Aqsa em Deir el-Balah, no centro de Gaza, uma instalação controlada por homens armados do Hamas, conforme seu testemunho.
Resgatada por Israel
Finalmente, como agora é bem conhecido, graças aos esforços de sua família, a um filantropo judeu canadense, a seus apoiadores em Israel e às IDF, ela foi resgatada no início de outubro e devolvida à sua família no Iraque.
Seus filhos permanecem com a família de Makdisi em Gaza, onde estão sendo criados como árabes muçulmanos.
Fawzia conclui seu depoimento de maneira simples e clara: “Até voltar para o Iraque, eu era o tempo todo uma 'sabaya', também em Gaza.”
"Sabaya" é um termo árabe que se refere a uma jovem mantida em cativeiro e explorada sexualmente.
O jornalista que acompanhou a entrevista, relatou que em todas as ocasiões em que a viu falar, Fawzia parecia ser uma jovem mulher de força e dignidade excepcionais.
Chaim Nachman Bialik, ao escrever em resposta ao pogrom de Kishinev em 1903, registrou a famosa frase: "A vingança pelo sangue de uma criança, o próprio Satanás ainda não inventou."